quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Aos Meus Amigos - 11


_ Eu tive um plano genial... – Anunciei, mostrando para os outros quatro um pedaço de cartolina vermelha. – Dá uma olhada nisso.
E assim dava início ao que considero meu primeiro ato criminal. Em uma mão a cartolina, na outra uma ficha de salgadinho da cantina, e elas eram da mesma cor. Idênticas.
_ Se a gente cortar do mesmo tamanho, é só esperar o movimento da cantina aumentar que acho que dá pra passar como ficha. O que acham?
Os quatro se entreolharam, com os olhos brilhando mas ainda confusos. Era como se um diabinho e um anjinho, cada um em um ombro, estivessem gritando em seus ouvidos para aceitarem e não aceitarem. Até que o Sidnei rompe o silêncio.
_ Tenta lá. Se der certo, ok, mas se falhar eu não tava sabendo de nada.
Os outros pareciam concordar, e topei o desafio.
_ Ok! Mas esse salgadinho vai ser meu. Se quiserem, cada um corre seu próprio risco.
Coloquei a ficha sobre a cartolina para marcar o tamanho certinho e, com cuidado de cirurgião, cortei a cartolina. Olhava hora uma hora outra para ver se dava pra notar alguma diferença. Na ficha original havia um carimbo da escola, mas a aposta era a correria e o sufoco da hora do intervalo para enganar o seu Josias, e lá fui eu, enquanto os outros observavam à distância.
O horário mais movimentado da cantina era logo que o sinal tocava. Todo mundo saia correndo, se acotovelando para conseguir comprar seu lanche primeiro. Alias, para trocar o dinheiro por fichas, então esperei um pouco para que, conforme mais alunos pegavam fichas, mais se aglomeravam frente ao balcão de troca. Poucos minutos depois estava aquele caos: gente sendo esmagada na frente; outros empurrando atrás; alguns com os braços estendidos sobre a cabeça dos outros enquanto gritavam o que queriam... e foi nessa hora que me aproximei.
Empurra daqui, empurra dali, estica o braço, da os gritos:
_ Salgadinho verde! Salgadinho verde!
Em instantes minha ficha é pega e no lugar me empurram um saquinho de salgadinho verde sabor cebola, e volto eu abrindo-o em direção à turma.
_ Me dá um pouco. – Fala o Tomás
_ Também quero. – Vai chegando o Cleber. O Sidnei fica no canto, quieto, só olhando.
_ Nada disso. Eu disse que se conseguisse seria todo meu. – E o saboreei tranquilamente.
_ É! Acho que vamos ter que entrar nessa... – disse, enfim, o Sidnei, quase que para si mesmo.

A ideia do Sidnei era a seguinte: no fundo da casa do Cleber tinha um quartinho que ficava vazio. O quartinho servia de edícula que alugavam para inquilinos vez ou outra, então tinha uma campainha para anunciar a chegada de alguém. Sempre que precisávamos estudar ou fazer algum trabalho íamos até lá e trancávamos a porta para não sermos incomodados, de modo que se os pais deles quisessem nos chamar era só tocar a campainha. Aproveitando desse espaço, diríamos que havia um trabalho chato da escola, e que teríamos que fazê-lo no sábado. Então nos trancamos lá com cartolinas da mesma cor que as fichas da cantina e iniciamos uma pequena produção de fichas falsificadas. Para dar mais realismo, o Hugo, que era o mais caprichoso, escrevia na borracha o nome da escola de trás para frente, imitando o escrito nas fichas, e carimbava as cartolinas que seriam recortadas. Não ficava igual, mas de longe dava pra enganar.
Segunda-feira chega. O grande dia do teste. Tínhamos em nossa posse algumas dezenas de fichas vermelhas, de doces e salgadinhos; verdes, de salgados; azuis, de refrigerante; e a mais valiosa, amarela, que era a de cachorro-quente, servido apenas às quartas-feiras.
_ E então? Por qual iniciaremos? – Disse o Tomas.
_ A de doce funcionou a primeira vez, sem carimbo nem nada. E se tentarmos um refrigerante? – Propôs o Sidnei.
_ Com a fome que estou toparia um salgado.
_ Se quiser arriscar, vai lá Cleber. – Falei – Mas, como o combinado, cada um se vira com o seu, e no caso de ser pego, nada de entregar os outros.
Todos concordaram com a cabeça. Alguns segundos de silêncio depois, o Cleber pega uma ficha verde e vai em direção à cantina. O movimento estava grande. Ele se aproxima e olha para trás, nos encarando, e acenamos positivamente para ele, incentivando-o. Ele entra na muvuca, se espreme e empurra e estica o braço e vai gritando:
_ Coxinha! Coxinha!
Uma das funcionárias que ajudavam o seu Josias na hora do intervalo pega sua ficha e lhe entrega uma coxinha, e o Cleber vai saindo, bem contente.
_ Cleber! – Era a voz do seu Josias.
O Cleber trava. Não consegue ir para frente e nem voltar para trás. Sua boca fica aberta, paralisada, pois estava prestes a morder a coxinha. Percebíamos a distância o seu desespero.
_ Oh, Cleber! Tá surdo? – Insistia o seu Josias.
Aos poucos, o Cleber vai se virando, ainda com a boca aberta e a coxinha na mesma altura que estava quando a levava à boca. Ele finalmente se volta para o seu Josias, sem dizer nada.
_ Se seu pai vier de novo falar que você tá gordo por causa dos salgados que come aqui, não te vendo mais coxinha, heim?
O Cleber só balança a cabeça, devagar, concordando. Se vira e vem em nossa direção. Estávamos todos aflitos. Com a boca ainda aberta apenas pronuncia:
_ Caramba. Quase me borrei todo...
_ Então fecha essa boca e come logo esse troço aí! – Falei, quebrando um pouco o clima de tensão.
Embora aquele tenha sido um grande susto, não nos impediu de continuar a usar nossas fichas, com cautela, claro, até que num dia, no meio da aula, recebo um bilhete passado de mão em mão vindo do Hugo. Abro-o:

Fui beber água e vi um monte de fichas rasgadas no chão da cantina. Fui ver e eram as nossas. Estão percebendo...

Olhei para trás e vi que o Tomas, o Sidnei e o Cleber também já estavam sabendo, e ficamos nos olhando, imaginando que já era hora de parar.

Na semana seguinte, as fichas haviam todas mudado, agora com marcas em alto relevo...

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