sábado, 26 de abril de 2014

Aos Meus Amigos - 11 (Parte II)


Como dizem, a vida continua... depois da morte da vó Cotinha procurei passar todos os dias na casa do vô Tonico, me habituando a levar o pão enquanto ele me aguardava com o café e as bolachas para um café da tarde. Era nítido o quanto envelhecera num curto período de tempo, passando a utilizar uma bengala para caminhar e parando de beber por conta dos remédios que agora tinha que tomar. Só o cigarro que não conseguia largar. Quase não falava, apenas respondendo as perguntas que eu fazia. Vez ou outra contava alguma história que sempre envolvia uma lembrança boa da vó Cotinha, e seus olhos se enchiam de lágrimas, e então voltava a se calar. Eram momentos tristes, mas eu os mantinha por medo de perdê-lo mais brevemente.
Em casa estava tudo bem: minha irmã teve um lindo menino no qual deram o nome do pai. Como o Roberto já tinha o nome do seu pai, o filho deles ficou sendo Roberto Neto, ou seja, o Neto. Meus pais estavam muito orgulhosos por serem avós, e sempre levavam o neto para ver se animavam o bisavô, que realmente ficava feliz, mas sem a mesma energia que tinha antigamente, já não fazendo as brincadeiras que tanto gostávamos quando crianças. Meu irmão havia prestado vestibular e todos aguardavam ansiosos os resultados, que sairiam apenas no início do ano. Meu interesse era saber se passaria em alguma cidade bem legal para poder visitá-lo e aproveitar mais o pouco que havíamos presenciado com o João.
Já na escola as coisas não iam tão bem. Eu tinha passado de ano após várias recuperações e quase um exame, e meus pais viviam me cobrando pelo fato do Lourenço ser um exemplo de aluno. Eu nem mesmo sabia o que queria da vida. Mas as amizades estavam a mil, ainda mais pela total união entre a turma da escola e a turma dos primos.
_ Natal vai ser com a família, mas Ano Novo promete, heim? – Comentei em meio a uma partida de bilhar no bar do Pescocinho.
_ Nós vamos na avenida do bairro né? – Perguntou o Hugo.
_ É lá que a coisa pega. Vai ser massa. – Respondeu o André.
Além de nós três estavam também o Jonatan, o Manezinho, o Cleber e o Mário. A avenida do bairro era uma avenida que ficava nos limites da cidade, num bairro onde não haviam muitas casas construídas, o que permitia muita gente parar lá com os carros com o som ligado e a galera bebendo e curtindo, além de ter um nascer-do-sol maravilhoso que todos esperavam para anunciar o Ano Novo. Aquele era o primeiro ano que eu poderia ficar até o amanhecer.
Revezávamos as duplas conforme o resultado de cada partida, e na mesa sempre uma garrafa de cerveja, que era o que mais gostávamos e juntávamos dinheiro para poder beber. Pra variar, idade não era problema no bar do Pescocinho.
_ E tá pegando aquela mina ainda Jonatan? – Perguntou o Manezinho.
_ De vez em quando só. Ela é meio louca. O Silvinho disse que o pelo da boceta dela é verde.
Caímos na risada.
Naquela altura alguns de nós já tinham iniciado suas vidas sexuais, mas o Hugo, o Cleber, o Mário e eu ainda não. O André vivia me dizendo que arrumaria uma garota pra mim, e aquilo me empolgava ao mesmo tempo que me deixava nervoso.
_ Ganhei mais uma, hahaha. – Vangloriava o André. – Vamos pra balada, moçada?
Terminamos as bebidas, pagamos a conta e fomos para a boate, mas não para a mesma de sempre, já que um clube no centro havia inaugurado uma nova boate que estava sendo a sensação do momento apesar de não ter nada de mais em relação à outra, a não ser por ter dois andares: embaixo ficava o bar e uma banda que geralmente tocava pagode, e encima era o som dance.
_ Hahaha! Olha lá uma desprevenida que veio de saia. Não deve ser daqui. – Disse o Mário, apontando uma menina subindo as escadas que tinham os vão vazados, de modo que quem estava embaixo podia ver a calcinha.
_ Da hora! – Concordamos todos.
Compramos doses de conhaque e refrigerante, dividimos em copos para todos e subimos. Observamos o movimento e nos postamos no lugar de sempre, que era próximo a uma grande janela e acendemos nossos cigarros. Da turma da escola apenas o Cleber começou a fumar, sem ninguém insistir, e o que o diferenciava de antes é que já não era tão gordo.
_ Passa o isqueiro. – Pediu o André para o Jonatan.
O Jonatan já sacou a arte e entregou o isqueiro, disfarçando para que o Hugo não visse, sendo ele a vítima da vez. O André se aproximou dele e acendeu o isqueiro na sua perna. Como ele estava de calça jeans não havia o risco de pegar fogo, mas certamente sentiria o calor em segundos.
_ Ai, Porra! Vocês são foda! – Gritou o Hugo.
_ Hahahahaha! – Todos caímos na risada.
_ Vocês tão fodidos comigo. Deixa você marcar André, que vou me vingar. – Desbravava já dando risada também o Hugo.
Copos eram esvaziados, cigarros acendidos e a noite seguia, hora um aprontando com o outro, hora alguém tomando fora de alguma garota. Subíamos e descíamos as escadas conforme enjoávamos de algum lugar, e a cada volta era uma forma de encontrar mais conhecidos e novas paqueras. Como não tínhamos mais hora exata para ir embora geralmente ficávamos até o fim. O fim mesmo:
_ Espera a maioria sair e vamos procurar coisas. – Sugeriu o Jonatan.
E lá íamos nós, olhando para o chão procurando dinheiro perdido ou algum outro objeto. Era comum cair algo no meio da balada e aquilo não ser achado na hora.
_ Achei cinquenta centavos! – Anunciava um.
_ Tem um brinco aqui. Nem vou pegar. – Dizia outro.
_ Hahaha! Uma camisinha! – Mostrava mais um.
_ Vai molecada! A farra acabou! Circulando! – Vinha o segurança nos tirando do salão.
_ Padaria ou praça? – Era a dúvida o Cleber ao sair.
_ A padaria vai demorar pra abrir e já tô meio cansado. Vamos pra praça mesmo. – Sugeriu o Manezinho.
Mais cigarros acesos e seguimos em direção à praça, onde havia uma barraquinha de lanches e lá se concentrava parte da turma que saia da boate.
_ Vai mais um conhaque com soda? – Perguntei.
_ Pra mim já deu. – Respondeu o Hugo.
_ Tomo com você Leo. – Aceitou o Cleber.
Pedimos nossos lanches e bebidas e lá ficamos, relembrando a noite e traçando grandes planos para o domingo e o restante da semana. Comemos nossos lanches, acendemos novos cigarros, refrigerante pra dar uma acalmada na bebedeira e a hora de ir embora se aproximava.
_ Olha lá sua namorada Jonatan. – Apontou o Manezinho.
_ Será que termino a noite bem? – Respondeu ele. – Ela tá com uma amiga. Se alguém for comigo eu vou, se não, não.
_ Eu vou com você. – Se convidou o André.
E lá foram os dois, conversando brevemente e saindo com as duas em direção a algum bairro menos movimentado à procura de algum lugar para um possível coito.
_ Esses dois são foda... – Choramingou o Hugo.
_ Nossa hora vai chegar. – Respondi.
_ Era só um de vocês ter se convidado para ir com o Jonatan. – Cutucou o Manezinho.
Ficamos quietos por nossa covardia.
_ Bora então moçada? – Sugeriu o Manezinho.
_ Vamos sim. Alguém tem uma bala pra disfarçar o bafo do cigarro aí? – Perguntei.
_ Acho que o Cleber tem. – Respondeu o Hugo.

E quando olhamos o Cleber estava dormindo na grama...


sexta-feira, 11 de abril de 2014

Aos Meus Amigos - 10 (Parte II)


O velório da Vó Cotinha juntou a família toda, inclusive um monte de parentes que eu nem conhecia, como tios e primos da minha mãe que moravam fora ou não. Durante a noite toda a casa foi preparada para o velório enquanto o corpo não chegava, o que havia sido combinado acontecer apenas ao amanhecer para que todos pudessem chegar em tempo. Eu não queria ir de jeito nenhum.
_ Leo, velório é o momento de nos despedirmos das pessoas que amamos. – Dizia meu pai. – E é um momento de dar um apoio ao seu avô.
Aquilo me chamou a atenção e olhei para ele.
_ Como o vô Tonico está pai?
_ Ele está bem quieto, até demais. Sua mãe tá bem preocupada. Faz tudo o que pedem para ele fazer sem falar nada.
_ Tá, eu vou, mas não quero chegar perto do caixão.
Foi um saco um monte de gente que eu nem me lembrava ou conhecia vir me cumprimentar com sorrisos e comentários alegres, como se nada tivesse acontecendo. Agiam como se a vó Cotinha estivesse por ali e tudo bem.
_ Como você cresceu!
_ É o filho mais novo da Marilda? Já tá um moço...
_ Lembra de mim? Seus pais foram visitar minha casa quando você era bebezinho...
Eu ia me esquivando. Queria encontrar o vô Tonico. Ele estava ao lado do caixão, que se encontrava no meio da sala. Me aproximei e ele nem viu. Segurei a sua mão.
_ Leo? Oh, Leo! A sua avó... – E me abraçou aos prantos.
Todos olhavam, pois desde que o corpo chegara a sua casa aquelas tinham sido sua primeira reação de sofrimento. Chorei muito abraçado a ele.
_ Leo, vem se despedir da sua avó.
_ Não quero vô. Não quero vê-la.
_ É só um momento Leo. Você precisa se despedir. – E começou a me puxar calmamente pelo braço.
_ Essa não é minha vó! – Gritei, me soltando de sua mão e correndo dali. Percebi que todos me olhavam.
Saí da casa, atravessei a rua e, inconscientemente, fui em direção ao antigo terreno do circo. Boa parte dele já havia sido vendido e agora eram casas ou barracões, e a mangueira que costumávamos subir já não existia mais havia tempo. Chegando lá não sabia o que fazer, me sentindo perdido.
E agora? - Pensava. - Saber que alguém pode nos deixar e essa pessoa nos deixar era algo muito diferente. Por mais que alguém possa estar preparado para isso é impossível não sentir o impacto no peito, a nebulosidade na mente, o vazio na alma... Aquilo não era justo! Não podia acontecer! - E, no meio da minha revolta, pensei: Se eu estou assim como estará o vô Tonico? E minha mãe e tios? E todas as outras pessoas que amavam a vó Cotinha tanto quanto eu? - E percebi o quão egoísta estava sendo, e decidi voltar. Mal iniciei meu retorno e pude ver outras figuras se aproximando. Eram meus primos, João, André e Manezinho. Todos com os olhos inchados. Se aproximaram em silêncio e nos abraçamos, como quando éramos crianças e queríamos elaborar nossos planos, mas dessa vez sem planos. Não havia planos para a morte. E choramos muito.
_ Temos que voltar Leo. – Disse o João, rompendo o silêncio.
Apenas concordei com a cabeça e começamos a caminhada, ainda abraçados. Nos aproximando da casa vi que o Cleber, o Hugo e o Mário estavam ali. Me desprendi dos meus primos e me dirigi a eles.
_ Meus sentimentos Leo. – Disse o Cleber.
_ Foda cara. Nem conheci seus avós, mas deve ser foda. – Falou o Mário.
O Hugo se aproximou e me abraçou. Mal conseguia falar ao perceber minha tristeza.
_ Força Leo. Nós estamos aqui para o que for preciso. Para isso servem os amigos.
Chorei mais. Agradeci os três e indiquei que iria entrar. Quando me afastei deles senti me tocarem o ombro.
_ Leo?
Me virei e vi que eram o Tomás e o Sidnei. Aquilo me surpreendeu.
_ A gente sabe o quanto você gostava deles. Meus sentimentos. – Disse o Sidnei.
_ Minha família também manda sentimentos. – Falou o Tomás. – Se precisar de algo pode contar com a gente
Dei um abraço nos dois sem dizer nada. Não sabia o que dizer. Teria nossa amizade realmente acabado ou ela estava apenas adormecida, mas sempre ali? Teria eu feito o mesmo se tivesse sido a vó do Tomás a falecer? Minha cabeça ficou mais confusa ainda, mas logo tais pensamentos se dissiparam ao perceber com o canto dos olhos uma presença, e ao olhar pude ver o Vini, do outro lado da rua. Apenas fez um aceno com a cabeça e se afastou. Decidi entrar de vez, agora mais calmo, mas com a cabeça ainda confusa. Muito mais.
Decidi procurar minha mãe, e ela estava ao lado do vô Tonico, junto com os outros tios. No caminha encontrei a Michele e a Milena, a Cássia e o Juninho, meus primos filhos da tia Matilde, os dois filhos do tio Osório que não via há muito tempo também estavam lá, assim como o Humberto. Cumprimentei a todos, mas não chorando mais e sim com certo sentimento de alegria, pois a vó Cotinha, apesar da situação, havia reunido toda a família, e ela merecia uma grande homenagem. Cheguei próximo à minha mãe e meu avô, segurando suas mãos. Os primos também se aproximaram, e percebi que o Silvinho e o Jonatan estavam presentes. Família e amigos. Amigos que são família e família que são amigos. Eu estaria completo se não fosse a ausência da Vó Cotinha.
_ Se despeça dela Leo. – Pediu o Vô Tonico.
Respirei fundo e me aproximei do corpo da vó Cotinha. Vi seu rosto que já não era seu, e toquei em sua mão gelada que não era mais a mesma dos bolos e sopinhas de pão.
_ Obrigado vó. – Falei bem baixinho, quase em pensamento. – Certamente você me fez uma pessoa melhor. Na sua ausência levarei seus ensinamentos, sua alegria, seu amor e seu carinho. Nunca me esquecerei de você e a forma de demonstrar isso será procurando tratar a todos da mesma forma que você tratava todos, sempre com um sorriso no rosto e a paz no coração. Te amo.
Dei um leve beijo na já não sua bochecha e voltei ao meu avô e minha mãe. Eu já não mais chorava e até esboçava um leve sorriso nos lábios. Meu pai estava certo: era um momento de despedida. Só não consegui segurar o choro no momento em que fecharam o caixão para o enterro.